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Fátima Ferreira, Filipe Inácio
DOENÇA CELÍACA com 33 monómeros é o péptido mais imunogénico e que
o mesmo é resistente à degradação enzimática pelo suco
Até aos últimos 10 -20 anos, a doença celíaca (DC) gástrico, pancreático e péptidos da bordadura em esco-
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era considerada extremamente rara fora da Europa e va . Pensa -se que exista uma disfunção das células T
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quase completamente ignorada pelos profissionais de como o principal fator responsável pela enteropatia .
saúde se não coubesse na definição clássica quanto à Recentemente foi colocada a hipótese de determinados
idade de aparecimento e às manifestações clínicas. A vírus intestinais (reovírus) induzirem uma resposta pro-
ideia clássica é a do desenvolvimento da doença celíaca -inflamatória a antigénios da dieta, alterando a homeos-
durante os três primeiros anos de vida, quando o cereal tase imunológica e, em particular, potenciando proprie-
é introduzido na dieta. Atualmente é uma patologia co- dades pró -inflamatórias em locais onde a tolerância oral
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mum em países predominantemente povoados por pes- é induzida .
soas de origem europeia (Europa, América do Norte e A predisposição genética tem um papel muito impor-
do Sul e Austrália), afetando 1% da população. Têm sido tante na doença celíaca e tem sido feito muito progresso
reportados casos no Norte de África, Médio Oriente e na identificação dos genes envolvidos. Sabe -se que a
parte do continente asiático, nestes últimos devido à doença celíaca está fortemente associada a genes de clas-
substituição, em parte, do arroz por produtos contendo se II do MHC (major complex of histocompatibility), HLA
trigo. A doença tem um segundo pico de incidência na DQ2 (95%) e HLA DQ8, localizados no cromossoma
terceira década de vida . 6p21; a presença de HLA DQ2 ou DQ8 é necessária para
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Um fenómeno interessante e origem de alguma per- o desenvolvimento da doença, mas não suficiente per se
plexidade para os profissionais de saúde é que o núme- e o risco estimado é de cerca de 40% .
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ro de indivíduos que consomem uma dieta isenta de
glúten parece superior ao número projetado de doentes Manifestações clínicas
diagnosticados com doença celíaca, o que faz pensar O espetro clínico da doença celíaca é complexo, mas
numa possível vulgarização de “diagnósticos” autorre- deve ser levantada a hipótese da sua existência em in-
portados. divíduos com qualquer das apresentações e/ou familia-
O glúten é o principal complexo proteico do trigo e res de primeiro grau de pessoas com doença celíaca:
tem proteínas que induzem reações de hipersensibilidade: dor abdominal inexplicável ou sintomas gastrointestinais
as gliadinas (monoméricas) e as gluteninas (agregados (sintomas clássicos de diarreia crónica, flatulência), di-
proteicos) com equivalentes na cevada e no centeio; ficuldade de crescimento, fadiga prolongada, perda de
quanto mais próxima a relação taxonómica com o trigo, peso inexplicável, úlceras orais graves ou persistentes,
maior a probabilidade de induzir a doença. Não existe défice de ferro, vitamina B12 ou folato, diabetes ou
consenso quanto ao papel da aveia, mas a avenina (tam- doença da tiroide de natureza autoimune, síndrome do
bém uma prolamina) pode estar implicada. cólon irritável (em adultos), lesões cutâneas papulovesi-
A reação ao glúten é mediada por ativação de células culares e pruriginosas nos cotovelos, joelhos, nádegas.
T na mucosa gastrointestinal, levando à indução de clones Existem formas atípicas e formas silenciosas da doença
de auto anticorpos do tipo IgA e IgG, dirigidos à transglu- descobertas ocasionalmente por despiste serológico.
taminase tecidular (tTG); a tTG é uma enzima citoplas- A prevalência de DC é maior em indivíduos com his-
mática ubiquitária que pode ser libertada extracelular- tória familiar da mesma, doenças autoimunes, défice de
mente, particularmente em resposta a lesão e stress IgA, algumas síndromes genéticas (Down, Turner, Wil-
tecidular. Sabe -se que um único fragmento de gliadina liam) e especialmente diabetes do tipo I e tiroidite.
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REVIST A POR TUGUESA DE IMUNO ALERGOLOGIA